A história é uma ciência verificável, portanto falível
por natureza, pois ao analisar fontes, o historiador encontra nestas várias lacunas.
A partir deste conceito, a análise de dois autores importantes da
historiografia é necessária, Roger Chartier com apresentação de conceitos de
apropriação, prática e representação. E Paul Veyne com uma explicação de como
se faz história a partir da análise de seus predecessores.
Quanto à análise historiográfica, Paul Veyne
apresenta que:
As lacunas
das fontes não nos impedem de escrever algo a que se dá o nome de história... O
mais curioso é que as lacunas da história fecham-se espontaneamente aos nossos
olhos... devemos abordá-las providos de um questionário elaborado. O
historiador pode dedicar dez paginas a um só dia e comprimir dez anos em duas
linhas, um século pode passar em
branco. O leitor confiará nele e julgará que esses anos são
vazios de eventos. (p. 18)
Porém a apresentação diferenciada de eventos e datas
pode ser proposital, de acordo com a intenção do historiador ou podem não o ser
pela intenção dos autores das fontes utilizadas. Por esta razão, Carlo Guinzburg,
na obra Mitos, Emblemas, Sinais sugere, a partir do método Morelli, que o
historiador possa efetuar a análise “abarcando os pormenores mais
negligenciáveis,” para então poder apresentar uma versão dos eventos mais
próxima da ‘verdade.’ Para Veyne: “a verdade histórica não é nem relativa, nem
inacessível,” (p. 27) porque “nenhum historiador descreve a totalidade, pois
deve escolher o caminho que não pode passar por toda parte. Nenhum desses
caminhos é o verdadeiro ou é a história.” (p. 30)
Os conceitos de apropriação e representação são
complexos, porém sua compreensão pode ser simplificada, onde apropriação seria
uma interpretação que não passa necessariamente por uma racionalidade, a
prática é a utilização da “utensilagem mental" da época naquele local, e a
representação é a expressão da apropriação, a qual se imputam valores à figura
representada.
De acordo
com Ronaldo Vainfas em Domínios
da História, Chartier propõe “um conceito de cultura enquanto prática, e sugere
para o seu estudo as categorias de representação e apropriação.” E continua sua
análise alegando: “Representação, segundo Chartier, pensada quer como algo que
permite “ver uma coisa ausente”, quer como ‘exibição de uma presença’, e
conceito que o autor considera superior ao de mentalidade.”
Vainfas completa sua afirmação
acerca de Chartier: “O objetivo da apropriação é ‘uma historia social das
interpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais’ que, insiste
o autor, ‘são sociais, institucionais, culturais.’” Como a apropriação é a
interpretação dos eventos, Lawrence Stone em um ensaio à Revista de História
afirma que o historiador deve estar ciente dos riscos envolvidos na análise,
enquanto usa-se da racionalidade para oferecer uma explicação plausível quanto
ao objeto de estudo.
A “utensilagem mental” é o que Michel de Certeau
chama de “lugar social”, que José Carlos Reis na obra A História Entre a Filosofia
e a Ciência nos explica como: “a organização do pensamento e a ação, os quais
existem em uma ‘situação’: um lugar e uma data – um evento. Por isso não é um
princípio supra-histórico que organiza o processo efetivo.” Acerca desta teoria
do “lugar social” Ciro Flamarion Cardoso em Uma Introdução à
História, afirma: “a realidade social é mutável, dinâmica, em todos os seus
níveis e aspectos.” Demonstrando a impossibilidade de repetição de cada
panorama.
Por conta desta prática do ‘lugar social’ a história
se apresenta como a análise de fontes que são a representação de eventos apropriados
de diversas formas, analisados de acordo com a mentalidade da época e do local
onde se faz a representação que pode ser falseada de acordo com a
intencionalidade de seu autor, pois segundo Chartier “as representações são
sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam” (p. 17). Com
isso Veyne nos apresenta que “a história não trata dos eventos, mas daquilo que
podemos saber deles.” (p. 18) Sobre isto, Peter Burke no livro A escrita da
História mostra que: “a fonte histórica pode ser falseada, assim como a
interpretação pode ser falha.”
Veyne apresenta que somente conhecemos as sociedades
a partir do que elas escrevem sobre si, onde “cada evento é relatado de formas
diferentes pelos diferentes atores e expectadores.” (p. 12) Enquanto, “um
acontecimento jamais coincide com o testemunho de seus atores e testemunhas.”
(p. 31) Para explicitar melhor, Burke, analisando relatos fotográficos entende
que: “assim como os historiadores, os fotógrafos não apresentam reflexos da
realidade, mas representações desta.”
De posse desses conceitos, a afirmação de que não se
chega a uma verdade absoluta é correta, pois não se tem a verdade, mas versões
da verdade, pois cada ator ou expectador se apropria da informação em uma
dinâmica diferente, faz uso do equipamento intelectual disponível para sua
realidade e representa o fato diferentemente, porque segundo Veyne: “A história
não é lógica.” (p. 18) Portanto “há uma pluralidade de interpretações
fundamentalmente equivalentes, mesmo que algumas delas possam distinguir-se
pela sua fecundidade.” (p.25)
As obras se tornam complementares e auto-explicativas
por tratarem da forma como o autor de história usam-se do ‘lugar social’ para
fazer representações da sociedade que não necessariamente condizem com a ‘verdade,’
pois além de existirem diversas nuances e ângulos de visão dos eventos, as
diversas lacunas presentes nas fontes podem ser utilizadas para que a análise
seja manipulada de acordo com interesses que podem ser explícitos ou implícitos
de acordo com a apropriação do historiador.
Bibliografia
VEYNE, Paul Marie. Como se escreve
a História: Foucault revoluciona a história. Brasília, 1982: ed.
Universidade de Brasília. Tradução: Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp.
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e
representações. São Paulo, 1982: ed. Difel. Tradução: Maria Manuela Galhardo
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